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O que o sangue une, o tempo não afasta

Depois de me sentir excluída por muito tempo, finalmente tenho um grupo de família na internet pra chamar de meu. Reunimos primos e primas no watts por um motivo não muito alegre, mas acabou sendo uma diversão. Um lugar para relembrarmos histórias vividas há pelo menos meio século, um tempo em que tudo se resumia em sermos felizes.

A família Tannuri é bastante numerosa. Nossos avós, que eram primos, assim como a maioria de seus contemporâneos, casaram-se e tiveram muitos filhos. Foram oito, cinco mulheres e três homens. Afinal, como diz a piada, “tem que ajudar na lujinha”. A turcaiada era próspera em tudo.

Os primeiros Tannuris chegaram ao Brasil por volta de 1889. Chegaram primeiro na Argentina, país que abriga boa parte do sobrenome. Do país vizinho uma parte migrou para o Brasil. Meu avô foi um deles. Pelo menos dois irmãos dele ficaram no país vizinho e por lá plantaram suas raízes.

Fui pesquisar no Dicionário de Origem das Famílias e achei pouca coisa. Apenas a data da primeira imigração e a variação na escrita (Tanuri, Tannuri, Tanoure e Tanure), todos, segundo o dicionário, originários da família Tanus. Os Tanus ainda vivem no Líbano.

Muitos anos atrás, o padrinho da minha filha, que também é de origem libanesa, contou que foi ao Líbano e visitou uma cidade chamada “Tanuri”. Mostrou até o mapa e estava lá. A outra teoria é a de que os árabes, assim como os orientais, na hora da imigração, no lugar do nome, as pessoas entendiam que a pergunta era de onde vieram. É por isso que existem tantos sobrenomes com nomes de lugares. Talvez a gente seja somente um lugar no mapa, vai saber.

Mas o que sei mesmo é que os membros do nosso núcleo originou-se no Rio de Janeiro, vindos da Argentina. Do Rio vieram para São Paulo e no interior do estado se estabeleceram.

Nossos bisavós eram proprietários da Fazenda Pedra Branca, hoje distrito de Boa Esperança do Sul. Minha bisavó Maria, libanesa e poliglota era conhecida pela generosidade. Contam que na hora do almoço os pobres faziam fila na porta de sua casa. E não saiam de lá sem um prato de comida. É lembrada até hoje na região. Ela era mãe da minha avó.

Já meu avô, Felício, pertencia à uma congregação cristã e imigrou para o Brasil ao completar a maioridade, e assim fugir do exército e da guerra. Falava cinco idiomas e junto com minha vó Sophia, foram um casal à frente de seu tempo. Fizeram questão de estudar as filhas numa época em que as mulheres eram educadas para o casamento. Meu avô morreu muito cedo. A maioria dos netos não o conheceu. Então, nossa memória está mais ligada à nossa avó.

Nas conversas do grupo lembramos um período em que nos reunimos em uma fazenda, em Santa Rosa do Viterbo, interior de São Paulo. A gente era feliz e sabia.

Minha bisavó é a do meio/Foto: acervo pessoal

Meus tios compraram essa fazenda e nas férias, reuniam irmãos, primos, primas, um mundaréu de gente numa casa cercada por uma varanda. Nela, uma mesa enorme sempre cheia de comida, histórias e afeto. Ao lado dessa mesa, um sino, que tocava quando a comida ficava pronta. Era hora de sair da piscina, depois de uma manhã inteira de mergulhos e risadas. Dedos enrugados de tanto nadar, descíamos para a sede para comer a melhor comida de todas, feita pela nossa avó.

Lembro de sonhar o semestre inteiro para chegar logo as férias. A gente ia de ônibus até Ribeirão Preto e de lá, para Santa Rosa. Meu coração quase parava quando via o caminho de eucaliptos, sinal de que estávamos chegando. Amava acordar bem cedo e caminhar na estrada. Era um dos programas familiares. Ia cheia de sono, já que dormir ninguém dormia. Tinha senha para entrar no quarto e quem não lembrava, dormia do lado de fora.

Santa Rosa era e ainda é uma cidade pequena é conservadora. Meus tios eram conhecidos na cidade. O tio José tinha um Ford Galaxie verde abacate, bem discreto. Adorava ir comprar pão com ele na cidade. Um dia, a ala mais velha dos primos, num passeio pela cidade, teve a brilhante ideia de afrontar as carolas na saída da missa, colocando seu traseiro no vidro do carro. Um Galaxie verde. Discreto. No mesmo dia, o delegado baixou atrás e depois de muita conversa, foi embora. Até hoje ninguém se entregou, um primo empurra pro outro.

Parte da turma na fazenda/Foto: acervo pessoal

Era na varanda que no final do dia todos se reuniam para o café e as sessões de hipnose comandaras pelo meu tio José. Dentista, o tio aprendeu a técnica para aplicar em seus pacientes. Toda noite três voluntários se submetiam a uma sessão e o tio, fanfarrão que era, fazia da gente gato e sapato. Eu por exemplo, segurei besouros, inseto que tenho pânico, toquei bateria e imitei animais.

Também foi na fazenda que um boi quase matou meu primo. Para chegar na piscina, tínhamos que passar por um curral. E ele estava sempre lá, bufando. A técnica era um distrair o bicho enquanto o outro passava. E para nadar na piscina, antes a gente tinha que tirar as pererecas, que também eram sócias do clube de campo. Naquela época o tempo corria, livre, leve e solto.

Minha avó cercada por parte da família/Foto: acervo pessoal

Quase cinco décadas depois, um grupo de internet reúne os sobreviventes dessa época. Digo sobreviventes porque todos os tios e tias, assim como alguns primos, já se foram. Aliás, foi a morte da última tia que nos reuniu. A “brimaiada” agora já está planejando se juntar de volta numa festa. Como sempre, nas famílias árabes tudo acaba em comida, música e dança.

Raquel Santana

Já foi jornalista, acha que é fotógrafa, mas nesses tempos de Covid-19 ela só quer sombra e água fresca no aconchego do seu lar. Vendo seriados, óbvio!

Foto: A casa da bisavó em Pedra Branca/acervo pessoal

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1 comentário

  1. Texto delícia.
    A gente viaja junto com a história.

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