As culinárias sagradas e poéticas das mulheres do Ile Asé Igba Oya Ygbalé

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Por Ana Paula Barcellos

Era uma tarde de sábado ensolarada, quente, bem londrinense. Usando vestido e tênis, desci a ladeira, parei em frente ao portão e mandei, com o fôlego atrapalhado pelo calor: “Boa tarde, o terreiro da Mãe Marli é aqui?”. Depois de me analisar por uns instantes, o rapaz pra quem fiz a pergunta abriu um largo sorriso, assentiu com a cabeça e me fez sinal para entrar. Falou duas vezes para que eu ficasse à vontade. E eu logo fiquei.

Fran Camilo – Foto: Acervo pessoal

Impossível não se sentir confortável na casa, a energia é muito boa e convidativa. Quando perguntei pra Fran Camilo (33, jornalista e cineasta que ministrou a oficina de poéticas audiovisuais em terreiros de Londrina a convite do Coletivo Luiza Mahin) o que mais havia marcado nessa experiência, ela respondeu de primeira: a forma como me receberam, como fui acolhida. “Parecia que eu tava em casa, deu até vontade de entrar pro terreiro”, contou sorrindo.

No dia em que a oficina teve início, os trabalhos da casa estavam a todo vapor. Ainda assim, as mulheres se organizaram e fizeram uma pausa para poder participar daquele momento, pensar como construiriam e representariam suas vivências dentro da proposta poética da atividade. A intenção era que, junto com a Fran, as próprias mulheres do terreiro pudessem escolher como gostariam de se ver representadas, qual seria a abordagem do registro (elas escolheram uma abordagem mais documental) e que aspectos de sua vivência religiosa no Ile elas gostariam de apresentar.

A escolha foi unânime: em conjunto, decidiram apresentar o preparo cerimonial da comida utilizada nos trabalhos e rituais. Nas religiões de matriz africana (nessa casa, Candomblé), a comida é um elemento importantíssimo, ferramenta de transmutação de energias; através dos alimentos, a comunicação com os Orixás é estabelecida e fortalecida, o canal energético alimentado; as preparações entregam pedidos, carregam demandas e intenções, agradecem e garantem proteção.

Asé

Não há Candomblé sem comida. Na liturgia de raiz africana, você cozinha com os Orixás e come com eles. A alimentação tem caráter de aliança, voto. Come o corpo e come também o espírito. A alma é alimentada com o axé.  Além de aproximar as pessoas dos Orixás, aproxima também da natureza, dos mistérios, das dádivas e das energias impalpáveis. E no terreiro tudo come: os filhos, o Santo, o altar, os atabaques, as guias, o Ori. Tudo se integra e se alimenta, e integra e alimenta a comunidade.

As preparações são coletivas, o compartilhamento após a realização dos trabalhos também. As mulheres do terreiro escolheram então o que seria preparado, quais participantes fariam a comida e quais gravariam os depoimentos que comporiam o mini documentário. Para os registros, elas ainda explicaram como se dá o processo da feitura da comida de Santo: desde a retirada da folha do pé até a utilização dos ingredientes, o preparo e a finalidade e uso no trabalho a ser feito.

Passar perto da cozinha nos momentos de preparação costuma ser uma experiência olfativa inesquecível. Observar o ritual de montagem das iguarias, apreciar o encontro daquelas mulheres todas reunidas, suas roupas, seus adornos… Ouvir as conversas, as experiências compartilhadas, os conselhos. Tudo isso, assim como a comida, é bênção do divino.

Descalça, com um cacho de uvas nas mãos, ouvi os pontos cantados. Vi os cabelos serem arrumados nos turbantes. Quase invisíveis, Fran e Ane Rosa (a fotógrafa) registraram cada momento com olhar atento. Todo segundo era precioso, todo gesto preciso, todo silêncio falante. E a força e propósito das mulheres da casa reverberava asé! Ali, também reverenciei meus guias e agradeci.

*A Oficina de Poéticas Audiovisuais para mulheres de terreiros londrinenses foi ministrada em 2023 por Fran Camilo com mediação de Fiama Heloisa e Ana Paula Barcellos, e foi uma atividade integrada ao projeto “Àjodún das Pretas: Mulheres, Olhares, Lugares” realizado pelo coletivo londrinense Luiza Mahin – LuMah, com apoio e recursos do PROMIC – Programa Municipal de Incentivo à Cultura.

Os belos registros resultantes dessa oficina, com as imagens do preparo da comida de santo, estão sendo editados e logo serão disponibilizados para o público em geral.

Ana Paula Barcellos

É graduada em História pela UEL, Mestre em Estudos Literários, integra coletivos culturais da cidade e é agente cultural. Sacoleira e brecholenta, trabalha com criação de joias artesanais e pesquisa de tendências, e escreve também a coluna de Moda deste jornal. Siga os Instagram @experienciasdecabide e yopaulab

Foto principal: Pinterest

Demais fotos: Acervo pessoal

(*) O conteúdo das colunas não reflete, necessariamente, a opinião do O LONDRINENSE.

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