Meus encontros com a delicadeza do esquecimento

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Por André Luiz Lima

Os encontros podem trazer momentos de delicadeza e afeto, compartilhados no tempo que estamos por aqui. O que vou dividir agora é uma confissão de amor. Amor em todos os sentidos, nesta troca que estamos fazendo agora.

Este momento que relato aconteceu em uma caminhada de fim de tarde, num domingo, com uma amiga. Estávamos no campo; o sol se punha lindamente. Os ipês floridos deixavam seus rastros pelo caminho, em uma mistura de cores emocionantes. Cães passeavam com seus donos. O lago refletia as nuvens, e o cheiro de pão assado saía da  casa ao lado, onde havia um ninho com pequenas corujas. Enfim, era um final de tarde comum para quem tem olhos para ver e coração para sentir.

Em certo momento, minha amiga virou-se para mim, naquele cenário, e disse: “O médico me disse que estou com Alzheimer.” Eu a ouvi, olhei profundamente em seus olhos e continuamos a caminhar, como se seguíssemos em frente, aproveitando a tarde cheia de delicadezas. Talvez, nós demos o direito de querer esquecer, mesmo relembrando esses momentos tão lindos de encontros, muitas vezes comemorados com horas de risadas, vinho, comidinhas e esperanças.

Como sou um homem que anda por aí, já presenciei outros pores do sol, onde outra pessoa também preferiu o esquecimento. Mas eu não esqueci e sigo lembrando o que aprendi.

Raul, pai de uma querida amiga equatoriana, Juana Guarderas, era uma pessoa realmente interessante. Ele foi diagnosticado com Alzheimer enquanto ela estava em Buenos Aires, a trabalho. A carta que ele lhe escreveu, relatando essa notícia, foi de uma beleza rara. Ele descreveu os momentos lindos que passaram juntos e disse que, de repente, havia optado pelo esquecimento. Naquela carta, ele agradecia e celebrava os encontros que, agora, seriam esquecidos por ele, mas registrados no céu.

Raul era um artista, guiado pela arte e seu entorno. É incrível como as coisas podem se tornar mais leves diante do inevitável. O sofrimento é opcional. O aprendizado é emocionante e o crescimento, com o rumo certo, nos traz o sentimento de dever cumprido.

Alzheimer chegou para uma amiga. E, na delicadeza dela ao aceitar a situação, lembrei-me de Raul, que conheci em Quito
Desenhos de Raul durante o processo do Alzheimer

Lembro-me da primeira vez que encontrei Raul. Fiquei impactado por aquele homem brilhante e sedutor, que me lembrava Salvador Dalí.

Raul era casado com Maria del Carmen Albuja Guarderas que já se fez presente aqui na arte dos encontros

A delicadeza do amor

Compartilho um emocionante relato de  Maria del Carmen sobre os cuidados com Raul:

“Na ciência do amor, da solidariedade e da fortaleza, Raul, ator de teatro, cinema e televisão, conviveu por mais de 14 anos com o Alzheimer. O senhor Alzheimer chegou ao meu lar como um hóspede não desejado, mas estava ali e não podíamos mais tirá-lo de casa. Me coube conhecê-lo, amá-lo profundamente, respeitá-lo e, inclusive, conviver com ele. No trabalho comigo mesma, entrei em contato com a minha divindade interior, que todos temos em nossos corações. Uma frase de Viktor Frankl, neuro psiquiatra austríaco que criou a logoterapia, me iluminou: ‘O sofrimento deixa de ser sofrimento quando encontra um sentido.’ E eu encontrei sentido nessas três palavras: aceitação, amor e alegria.

Aceitação é receber o que a vida nos dá, sem brigar com a existência. Aceitar a vida como ela é. Tudo é divino. Aceitando, os desejos, as tensões e o descontentamento desaparecem. Aceitando as coisas como são, começamos a sentir prazer. E sem razão aparente, o amor se torna a força vivificante que tudo move. A ternura e a entrega eram o que Raul mais precisava. Viktor Frankl também diz: ‘O amor é o único caminho para chegar ao mais profundo da personalidade humana; nada conhece a essência do outro ser humano, senão o amor.’ Pelo ato espiritual do amor, quem ama vê além.

A alegria é o grato movimento da alma, condutora das bênçãos, do humor, da juventude e da hilaridade. As melhores e mais íntimas sensações de prazer vêm dos sorrisos. Não devemos levar tão a sério os equívocos. Sorrir é fundamental.

Dou um exemplo: Raul não queria tomar banho. Então, o levei ao campo, onde colhemos flores de todas as cores. O amarelo, por exemplo, representava a felicidade e a imaginação. Assim, fizemos das cores um belíssimo ritual diário. Temos a magia e a alquimia de transformar as coisas em verdadeiros milagres!

A palavra ‘paciência’ decidi dividir em ‘Paz’ e ‘Ciência’. A paz do campo e a ciência para compreender as coisas. Me nutri de leituras, conversas com pessoas positivas e preenchi o tempo. Deixei de lado comentários negativos e maus prognósticos, como quando me disseram que Raul deixaria de me reconhecer. O importante é que eu o reconheça. Isso é qualidade de vida para nós.

Primeiro, cuidei de mim mesma, pois precisamos de energia vital para acolher o que vem. Para preservar a memória de Raul, busquei várias formas, como reiki e ajuda qualificada. Estimulei a psicologia positiva, a escrita, a música, o desenho. Isso aumentou os bons períodos de Raul. Um dos exercícios foi escrever cartas para seus filhos e netos.

Segue a carta que escreveu para Juana:

‘Minha filha adorada, quero te contar um conto, o meu conto. Estou em outro momento da minha vida. Permiti que duendes e libélulas do bosque entrassem em meu cérebro. Toco minha flauta, e eles dançam comigo. As pessoas dizem que estou fora de órbita, mas eu me sinto abençoado, porque sonho mais do que nunca. Vou ao planeta dos meus sonhos e encontro coisas maravilhosas, impossíveis de descrever. Voei para Bagdá e vivi os sonhos das mil e uma noites, antes que os gringos chegassem para destruir tudo. Encontrei a lâmpada mágica, subi em um tapete mágico e voltei para casa. Tapei meus ouvidos para não ouvir o ‘BUM’ da destruição. Ajoelhei-me na terra e beijei o tapete mágico do campo quando aterrissei. Será que é por isso que dizem que estou fora de órbita? Ligo a televisão e me dizem para aterrissar. Tudo o que vejo é sangue e lágrimas. Pergunto-me: por que voltei do planeta dos meus sonhos? Dizem que apenas crianças e velhos podem sonhar. Sigo sonhando. Do seu pai que te adora, Raul.’

Entendem por que falo de delicadezas de uma tarde de domingo?

Muito amor envolvido na arte dos encontros.

Viva a Vida, André!

André Luiz Lima

Londrinense, ator, diretor, professor, palestrante e produtor cultural. Siga os Instagrans de André@allconnecting @aondevaiandre

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(*) O conteúdo das colunas não reflete, necessariamente, a opinião do O LONDRINENSE.

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Respostas de 8

  1. Lindo !!!
    Expressa uma delicadeza e um cuidado com esse tema tão presente na vida das pessoas que estão na fase final da sua jornada.
    Fala de amor não de tristeza. Fala de poesia e não do sofrimento. Fala da presença ( enquanto) presente e não da ausência que pode estar próxima. Brilhante André!!!!

  2. Qué bonito André! através do seu relato consigo vivenciar tudo! os Ipês coloridos, as flores coloridas nas mãos do Raul, as libélulas dançando. Os infinitos silencios… o seu silencio ao receber a noticia da sua amiga, o da Juana ao ler a carta do seu pai, o da Maria del Carmen precisando se escutar a si mesma para acompanhar ao seu companheiro. Obrigada por seu relato, chega a mim num momento importantíssimo!!

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