Quando eu era criança, com meu querido Atari VCS 2600, tinha que desenvolver muito a imaginação para poder jogar alguns dos títulos daquele console. Jogos de Atari com manual eram praticamente impossíveis de se achar em Ivaiporã nos anos 1980. E mesmo que um desses parasse em nossas mãos, o manual certamente sumiria em questão de minutos.
Fizeram falta? A princípio eu diria que não. Até porque, na maioria dos casos, era só atirar em qualquer coisa que se mexesse e estava tudo certo. Megamania é um exemplo. Você controla uma nave que atira em outras naves que vão e vem na tela; às vezes elas passam da esquerda para a direita, às vezes elas caem sobre você. Tudo bem, nada demais. Até o dia em que uma cópia diferente desse jogo caiu em minhas mãos. Eu tinha (tenho ainda) uma da Polyvox, a do rótulo prateado com a imagem de um tiozinho boquiaberto com o reflexo no jogo nos óculos e com uma gravata borboleta vermelha com bolinhas amarelas à espreita. Sem manual.

Mas essa cópia diferente da minha tinha um pequeno texto impresso na parte de trás do cartucho.

Esse era do Missile Command
E ali, instruções daquele que não era só um jogo de tiro. Megamania era um pesadelo espacial, onde o comandante de uma frota de blasters se vê sob ataque de ondas e mais ondas de objetos extremamente agressivos. Que objetos eram esses: hambúrgueres, cookies, insetos, pneus radiais, diamantes, ferros a vapor, gravatas borboletas e dados espaciais. Agora, e só agora, aquele rótulo do cartucho da Polyvox fazia sentido, com a gravata borboleta esperando para obliterar o incauto e mesmerizado mancebo.
Enduro, então, era simples por si só. Você pilota um carro durante uma corrida por dias, com um objetivo de ultrapassar determinado número de carros a cada período. A passagem do tempo é visível no cenário: durante a manhã, pilotagem normal em pista de asfalto; por volta do meio-dia, você atinge um trecho de neve, o que deixa a direção menos responsiva; à tarde, o carro volta a trafegar pelo asfalto e no horizonte percebe-se a mudança de cores do crepúsculo; de noite, desaparecem os traços dos carros (só o seu permanece visível) e enxerga-se somente as luzes traseiras; um pouco mais tarde, pela madrugada, uma forte neblina tira a visão de metade da tela, o que exige mais destreza e cuidado na direção; o dia começa a nascer e os carros adversários voltam a ser visíveis, e um incômodo alarme avisa se o piloto estiver abaixo da meta diária.
Nesse caso, o manual era a cereja do bolo – não atrapalha se não está lá, mas faz toda a diferença quando presente. Tanto pelo design, dominado pelo quadriculado das bandeiras de chegadas nas corridas, quanto pelas informações que traz. Logo de cara, o texto mostra que a brincadeira acabou. “Ajuste seus óculos, mergulhe no seu assento. Deixe seus medos no pit. Você está prestes a entrar na corrida da sua vida”. Se isso não faz você largar tudo o que está fazendo e jogar, acho muito difícil que qualquer outra coisa o faça.
Mais do que isso, se você fosse longe o suficiente na corrida, pelo menos 5 dias na estrada, era só tirar uma foto da tela da TV junto com o nome e endereço e mandar para a Activision, que em resposta mandava um patch bordado exclusivo para quem batesse esse recorde. Agora você fazia parte do exclusivo clube dos “Roadbusters”.

Me lembro, ainda hoje, de quando meu pai bateu essa meta sem saber que ela existia. Quando um pequeno troféu apareceu na tela, ele mandou que eu fosse até a casa de um amigo nosso para chama-lo como testemunha do feito. Ninguém ali tinha visto coisa parecida, e logo o José Calsavara era praticamente uma celebridade na vizinhança.

Com os jogos de Odyssey era diferente. Não havia tantos clones, e a Philips caprichava nas edições nacionais dos jogos. Títulos como “Senhor das Trevas” (Attack Of The Time Lord, no original em inglês) trazem verdadeiras pérolas.

Cuidado ao pressionar 1 no teclado alfanumérico, pois com essa aparentemente simples ação “você acaba de despertar a atenção do imortal Senhor das Trevas, do Caos e dos Tempos”. Meu irmão, fodeo. Corrão para as colinas, porque a besta está solta. Depois de termos “técnicos”, como “canhão laser”, “portal do tempo”, “minas de antimatéria”, chegamos ao descritivo do Quarto Nível. Deleite-se:

Aqui vale a transcrição: “Quarto Nível. Você conseguiu o respeito do Senhor das Trevas, o que é uma graça muito duvidosa. A próxima frota possui em seu sistema de armamentos as lendárias Minas Nucleônicas de Tempo. Esta espécie de mina é extremamente mortal porque é guiada por pequenos robôs programados para antecipar as reações humanas”. Cara, se fossem minas comuns eu já teria medo. Mas não, são Minas Nucleônicas de Tempo. Mais do que isso: são Minas Nucleônicas de Tempo guiadas por robôs. E não são qualquer porcaria de robôs: são pequenos robôs programados para antecipar as reações humanas, e por isso extremamente mortais. Quer dizer, qual a chance de isso dar certo? Eu sabia que apertar o 1 e atrair a atenção do Senhor das Trevas, do Caos e dos Tempos não tinha sido uma boa ideia.

Entendeu a importância de um manual de jogo de videogame? É ele que realmente situa o jogador frente ao desafio que ele precisa encarar. É o manual que, como os maravilhosos impressos da Activision para o Atari, trazem dicas preciosas dos programadores. E nos permitem fazer descobertas importantes, como aprender que quem criou o maravilhoso River Raid (ou “jogo do aviãozinho”) foi uma mulher, Carol Shaw.

Não se brinca com um manual de videogame. Ponto.
Mas um engraçadinho quebrou essa regra de ouro. O vivente em questão, que atende pelo arroba @vecchitto no Twitter, postou em fevereiro de 2019 uma série de fotos de um suposto manual original de Tetris para o NES. “Alguém sabia que as peças tinham nomes?”, o infeliz pergunta
Em uma das imagens, a lista de peças e os supostos nomes:

Orange Ricky, Blue Ricky, Hero, Teewee, Smashboy, Cleveland Z e Rhode Island Z. Sério mesmo? Na sequência da postagem alguns internautas portaram fotos de outros manuais, na mesma página 12, desmentindo o engraçadinho.

Mas a merda já estava feita. Agora no começo de outubro, mais de meio ano depois, o programa americano de perguntas e respostas Jeopardy! mostrou a seguinte questão a uma das participantes:
[MANUAL_12.jpg]

A guria responde quase que perguntando de volta: “What is Tetris?” . E eis que o mundo agora está diante de um cenário com duas e apenas duas possibilidades: ou o Jeopardy! faz um pedido oficial de desculpas sobre o caso ou a gente aprende a chamar as peças por esses nomes babacas e não se fala mais no assunto.
Fotos: divulgação e acervo pessoal
Fábio Calsavara

É jornalista e gamer raiz. Do tempo em que criança jogava fliperama em boteco de rodoviária.