Por Alessandra Diehl
Esta semana, deparei-me com algumas matérias nas mídias internacionais falando a respeito da síndrome ou do fenômeno Hikikomori. Fiquei curiosa e fui olhar no pubmed se já havia algum artigo que ligasse este fenômeno a área das dependências não químicas. Encontrei alguns poucos que exploraram esta relação, principalmente um muito interessante publicado ano passado na revista cientifica Brain Sci, escrito por Liliana Dell’Osso e colaboradores, que revisou a ligação entre este novo fenômeno chamado de Hikikomori e os transtornos por jogos de internet.
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Mas, afinal, o que é o fenômeno Hikikomori?
Hikikomori é uma forma de retraimento social patológico ou isolamento social com duração superior a 6 meses, associado a um comprometimento funcional significativo ou sofrimento. A sua natureza é multifatorial e não se encontra totalmente esclarecida, mas frequentemente se associa a fatores como: temperamento tímido, experiências traumáticas na infância (principalmente bullying), dificuldades acadêmicas e/ou laborais e dinâmicas familiares disfuncionais.
Esta condição, identificada e abordada pela primeira vez no Japão, tem recebido atenção crescente desde o final da década de 1990. Posteriormente, vários casos foram descritos em outros países como Coreia do Sul, Espanha e Estados Unidos e mais recentemente em Portugal, tornando o Hikikomori uma condição de interesse crescente da comunidade científica e digna de atenção global.
Um estudo coordenado pela psicóloga Ivone Patrão e divulgado esta semana em jornais de Portugal conclui que esta condição também já afeta alguns portugueses, uma vez que dos 124 participantes, 1,2% adotam este comportamento. E se a percentagem de Hikikomori extremo pode parecer irrisória (1,2% estão “em linha” com os valores obtidos noutros países onde o fenômeno foi estudado, como Estados Unidos ou França, e não muito longe dos 4% registados no Japão), os números dos indivíduos em risco de resvalar para esse nível são mais impressionantes. Mais de 43% dos indivíduos estudados revelaram sinais de risco. No Brasil, há poucos estudos ainda produzidos por autores publicados recentemente. Nenhum estudo populacional ou de amostra clínica maior foi encontrado até o momento.
Hikikomori é um fenômeno cultural?
Em anos anteriores, esta era uma das principais controvérsias neste campo, pois acreditava-se que a síndrome de Hikikomori estaria ligada a um ambiente cultural específico, com os autores questionando se poderíamos falar de Hikikomori fora do Japão. Em particular, acreditava-se que a síndrome de Hikikomori estava associada a condições socioculturais específicas, estressores, como a necessidade de responder a altas solicitações sociais que alguns sujeitos da nova geração se sentem incapazes de cumprir.
No entanto, a condição até o momento tem sido amplamente observada em vários países diferentes, enquanto fatores de stress social semelhantes também foram relatados entre os jovens na maior parte do mundo industrializado, parcialmente ligados à crise do ambiente econômico das últimas décadas e à crescente prevalência da condição predisponente de “não estar empregado, estudando ou treinando”.
Características do Hikikomori
Cabe ressaltar que, até o presente momento, o fenômeno Hikikomori ainda não foi incluído no sistema categorial do DSM-5-TR (versão mais atualizada do Manual Estatístico de Diagnósticos Psiquiátricos americano), onde é descrito apenas como uma síndrome ligada à cultura, pois ainda falta consenso sobre os critérios diagnósticos e se de fato estamos diante de uma nova categoria de doença mental.
A definição atualmente mais comum contém os seguintes três elementos-chave:
(1) Isolamento social acentuado no domicílio, que inclui o afastamento físico no próprio local de residência, a ausência de participação ativa em ambientes acadêmicos e laborais, bem como o limitado envolvimento nas relações sociais;
(2) A duração do isolamento social é de pelo menos seis meses;
(3) O isolamento social está associado a prejuízo ou sofrimento funcional significativo.
Kikikomori e transtorno de jogos na Internet
Embora a estreita relação entre essas condições tenha sido descrita de diversas formas em estudos teóricos, os dados da literatura ainda são limitados. No entanto, observa-se que indivíduos em risco de hikikomori apresentam maior tempo de uso da Internet e pontuações mais altas no Young’s Internet Addiction Test (IAT) e na Smartphone Addiction Scale (SAS).
Aqueles que utilizam a Internet para jogos correm maior risco de desenvolver hikikomori do que aqueles que utilizam a Internet para redes sociais. Esses dados poderiam ser explicados pelo fato de o jogo, principalmente quando competitivo, ser uma atividade melhor realizada no computador do que no smartphone, induzindo o sujeito a passar mais tempo em seu quarto para ter uma melhor experiência de jogo. No entanto, isso pode aumentar a redução de atividades sociais externas.
Os dados podem estar ligados ao fato de que este modo de jogo consome muito tempo e permite ao sujeito criar uma rede mais complexa de relações sociais nas quais poderia estar imerso o dia inteiro e por vários dias consecutivos, sem a necessidade de se encontrar com outras pessoas na vida real, atendendo perfeitamente às necessidades sociais dos sujeitos hikikomori.
Os sujeitos Hikikomori também parecem preferir relacionamentos cibernéticos e, em geral, mostram maior satisfação com relacionamentos on-line do que com relacionamentos reais. Também foi observado que, na ausência de tratamento adequado, o hikikomori e o transtorno por jogos se reforçariam mutuamente ao longo do tempo, com aumentos progressivos na gravidade de ambos as condições.
Em particular, uma das principais questões relacionadas com a ligação entre Hikikomori e Transtorno por jogos é qual condição teria mais probabilidade de começar primeiro e depois promover a outra, o que, por sua vez, seria reforçado.
Para finalizar, faço um apelo aos pais: prestem atenção a seus filhos adolescentes e jovens em casa. E intervernham, caso identifique sinais de hikikomori.
Imagem principal gerada pelo Bing
Alessandra Diehl
Psiquiatra, membro do Conselho Consultivo da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e Drogas (ABEAD) e membro da Associação Paranaense de Psiquiatria (APPsiq). @dra.alessandradiehl
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