O homem que picava jornal

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Por Wilhan Santin (*)

Ele tinha aquela barba imensa e desgrenhada que só os mendigos sabem ter. O cabelo confundia-se com a barba, tudo emendado, engrenado, unido por camadas de poeira de dias sem banho.

Certamente trocava de roupa com alguma vaga frequência, mas como estava sempre coberto de pó, parecia que a vestimenta era a mesma, eterna em seu corpo.

Mancava suavemente da perna direita. No olhar havia certa dignidade, olhos mansos de quem não tem ódio, de quem tem até alguma paz. A boca perdia-se no meio de todos aqueles pelos grossos, mas às vezes revelava um meio-sorriso.

Ele não falava com ninguém, não interagia. Um mendigo calado, que já estaria riscado de minha memória; não fosse um hábito que o diferenciava de todos os outros: picava jornais.

Tinha sempre, sempre mesmo, nas mãos uma folha de jornal. Ia picando, em pequenos pedaços, delicadamente, e jogando pelo caminho, como quem deixa marcas, rastros, sinais, para ser seguido sabe-se lá por quem.

Uma folha de jornal standard durava horas e milhares de passos em suas mãos, até esvair-se picadinha pelo homem anônimo. Não falava, não interagia, nada pedia. Até por isso não sei se é correto chamá-lo de mendigo. Picava jornais. Talvez lesse as notícias antes de destroçá-las. Caso sim, qual seria sua editoria preferida?

Faz alguns anos ele sumiu das ruas da zona leste de Londrina, onde eu o avistava de vez em quando. No Jardim Castelo. No Jardim Ideal. Na Dez de Dezembro, andando na contramão dos carros. Alheio a tudo. Atento à tarefa de andar e cortar jornais com as mãos.

Naquele tempo, jornais impressos eram mais comuns. As bancas também. Obter jornal de ontem gratuitamente era fácil. Provavelmente, neste 2019, tempo em que jornais usados são vendidos por preços até consideráveis, ele teria alguma dificuldade para encontrar matéria-prima para seu trabalho maior.

Será que por isso é que sumiu? Creio que não. A rua cobra caro do corpo. Da alma, se cobra, eu não sei.

O que houve com o homem que picava jornal?

(*) é jornalista em Londrina e tem um dos melhores textos da cidade, na atualidade.

Foto: Pixabay

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