Por Ana Paula Barcellos
Desde sempre, sou uma pessoa de livros. Minha família, uma ilha cercada deles. Na casa dos meus avós, em Rio Cuarto (Argentina), tinha prateleira com livro até na cozinha. No apartamento em Londrina, onde cresci, o cenário era o mesmo. Livros no guarda-roupa, na estante, nas prateleiras, nas mesinhas de cabeceira, nas caixas e até no balcão aparador da sala. Eram livros por toda parte.
Lembro de quando eu e meu irmão, um dia, decidimos construir uma cidade-fortaleza com todos os nossos livros e gibizinhos. Uma coleção enorme, comprada e pechinchada na Banca Amiga do Toninho, lá na Quintino. E na nossa cidade-fortaleza, a Barbie e uma boneca genérica liam seus mini livros protegidas pelos Comandos em Ação. A cidade ficou de pé por um bom tempo, afinal, já tínhamos lido todos mais de uma vez.

Eu adorava ler na cama, deitada de barriga pra baixo e pés para cima, mas meu lugar favorito era uma mesa de canto na biblioteca do Sesc Centro, na Fernando de Noronha. E sempre tinha as “tias bibliotecárias”, que ficavam atentas aos meus gostos literários e, de vez em quando, até me deixavam levar um livro a mais. O cheiro dos livros naquela biblioteca me acompanhou por muito tempo, e mesmo que agora ela tenha mudado de andar, ainda posso sentir aquele cheiro se eu fechar os olhos. A “Lido”, livraria dos anos 1980 e 90 que vendia livros novos e usados, também era incrível. Passeava por lá, passeando entre as estantes, passando o dedo nos livros rapidinhos.
E eu lia em qualquer lugar. No banco do Calçadão, na pracinha na esquina com a Sergipe, no carro, até na Papitos. E aprendi a gostar de ler enquanto bebo ou como algo gostoso, uma delícia multiplicada, pequeno luxo cotidiano.
Com o tempo, minha biblioteca pessoal cresceu. Virou uma cidade-fortaleza, ainda mais sólida, até que, aos 21 anos, quando tranquei a faculdade para viajar, precisei desmontá-la. Vendi boa parte dos livros para atravessar fronteiras, explorar outros lugares. Em cada cidade nova, comprava livros para repor os que se foram, e quando voltei, fui direto ao sebo para reconstruir minha fortaleza. E ela cresceu de novo.
Os anos passaram e, junto com eles, chegaram páginas difíceis de virar. Fui desmontando minha cidade várias vezes, construindo pontes, erguendo muros, guardando outras histórias. Ver as prateleiras vazias, com enfeites e bonecos tristes, foi um processo doloroso, mas que fazia parte daquela vida, naquele momento.
Páginas viradas, novos e velhos livros
Ano passado, no meu aniversário, Oli me levou até o Sebo Capricho. Escolhemos alguns livros e, ao passar pelo corredor, eu, num impulso, pedi para o vendedor procurar um título da Rosa Montero. Era um livro que foi meu companheiro por anos e que, em algum desses momentos da vida, precisei me desfazer. O vendedor disse que seria difícil encontrar, pois o livro era muito procurado. Insisti, e, para minha surpresa, o sistema registrou o título! Ele apareceu, e eu, sem acreditar, pedi para ver. Quando abri, o que encontrei? Minha própria letra, minhas anotações feitas a lápis nas margens. Era o meu exemplar, aquele que eu havia deixado para trás, anos antes. Eu não acreditava. Oli também não acreditou.


E aquele livrinho, que parecia perdido no tempo, virou a base da minha nova cidade-fortaleza, o alicerce para os outros que virão. Agora, na minha versão de vida Herbert Richers, eu compro livros. Vários. Esse é o meu luxo. Tem quem aposte, colecione objetos ou se jogue nas baladas. Eu compro livros. E construo com eles minha cidade-fortaleza, um refúgio que parece nunca ficar pronto – e isso é ótimo.

Mas, assim como encontro livros e me reencontro com eles, também os perco e esqueço. Você pode me encontrar comprando livros na Olga ou no Capricho, mas também pode, com sorte, encontrar um livro meu esquecido por aí, em algum lugar improvável. No balcão de uma barraca de ovos na Avenida São Paulo, num banco do jardim do Espaço Ser, ou até na mesa de alguma biblioteca. O último livro que perdi? “Sobre os ossos dos mortos”. E tudo bem porque eu acho que existe poesia também nesse ato de perder livros. De alguma forma, alguém vai encontrá-los. E existe poesia também no momento em que um livro perdido é encontrado. Eu acho.
Foto principal: Imagem gerada por IA/Freepik

Ana Paula Barcellos
É graduada em História pela UEL, Mestre em Estudos Literários, integra coletivos culturais da cidade e é agente cultural. Sacoleira e brecholenta, trabalha com criação de joias artesanais e pesquisa de tendências, e escreve também a coluna de Moda deste jornal. Siga os Instagram @experienciasdecabide e yopaulab
(*) O conteúdo das colunas não reflete, necessariamente a opinião do jornal