Por Marcelo Minka
Com O Agente Secreto, inaugura-se nos nossos cinemas uma nova cartografia de inquietude: a chegada de O Agente Secreto (2025), obra do cineasta Kleber Mendonça Filho (Aquarius, 2016). Situado em Recife em 1977, o filme nos convida a um território lamacento como mangue, de memória, vigilância e identidade, protagonizado por Wagner Moura (Tropa de Elite, 2007), que retorna da movimentada São Paulo para a cidade natal em busca de um recomeço — apenas para descobrir que o refúgio era, desde o início, uma armadilha.
Logo no primeiro ato de O Agente Secreto, Mendonça Filho impõe um clima de paranoia que faz o cinema ou qualquer lugar de reunião parecer um campo de escutas. A ambientação, veículos antigos, paisagens nordestinas diluídas num carnaval que se anuncia como fachada de paz, instala a metáfora: o silêncio pré-tempestade. Moura, num papel contido, encarna mais o eco de um homem que questiona do que aquele que age e essa contenção descamba para uma atuação premiada em Cannes, o que o coloca novamente entre os grandes intérpretes brasileiros de seu tempo, desde os dias de Marighella (2021).
O diretor faz uso elegante do gênero: um thriller de espionagem à brasileira, atravessado por traços de neo-noir e horror sutil. Não se trata apenas de caça a espiões, mas de rastrear memórias que seguem vivas, mesmo quando se tenta soterrar a verdade. A câmera de Mendonça Filho parece sussurrar que o que não é dito ecoa mais alto do que o que é mostrado. Há jogos de espelho entre passado e presente, entre o visível e o oculto, e isso dialoga com o cinema como arquivo e como armadilha, como já experimentara em O Som ao Redor (2012).
Visualmente, O Agente Secreto respira. A escolha da época, de 1977, não é mero escapismo de período: é a exposição de um momento em que a ditadura já respirava fundo, de maneira quase subterrânea, preparando-se para efervescer. Nesse recorte, o espaço urbano recifense torna-se personagem: ruas, prédios, sala de projeção — todos testemunhas de um sistema de controle que, embora silencioso, é invasivo. Mendonça Filho constrói tensões com paciência, deixa o espectador desconfortável no banco, faz dele cúmplice do olhar, da expectativa, da angústia — o mesmo olhar que permeava o inquieto bairro de classe média de Aquarius (2016).
Contudo, há um preço: a duração, que ultrapassa as duas horas e quarenta, exige do espectador uma resistência que vai além do entretenimento. Em alguns momentos, o ritmo escorrega para devaneios de estilo que podem afastar quem busca narrativa mais direta.

O Agente Secreto ovacionado
O filme foi ovacionado em Cannes, na competição oficial, e saiu com prêmios importantes, o que já estabelece seu tom de “obra séria”. No agregador Rotten Tomatoes, ostenta atualmente 100% de aprovação segundo 66 críticas, com média de 8,9/10, classificadas como “Fresh”. A recepção no Brasil parece seguir a mesma trilha: Wagner Moura descreveu o retorno à língua portuguesa como “libertador”, algo que o conecta novamente à densidade dramática que já havia revelado em Marighella (2021).
Para o espectador, que talvez busque tanto entretenimento quanto reflexão, O Agente Secreto oferece algo mais do que escapes visuais ou adrenalina: ele pede envolvimento, não só com um personagem, mas com o país que fomos, somos e ainda podemos vir a ser. Em meio à mira da câmera e ao sorriso contido de Moura, há uma interrogação persistente: quem nos espreita quando achamos estar seguros? Quem torna-se agente, mesmo sem sapato ou arma, de um sistema que monitora memórias? É um filme que exige engajamento, não apenas com as luzes da tela, mas com as sombras que carregamos.
Aqui a tela é espelho e lente de aumento, nos devolve o rosto que evitamos ver. Quando sairmos da sala, pergunto: colaboramos quando aceitamos silenciar? O filme nos deixa com essa irritação constante que coloca à mesa perguntas ainda não feitas.
Marcelo Minka

Mestre em Antropologia Visual (UEL), dá forma à linguagem estética da Angatu Joias, unindo arte, forma e símbolo em criações que revelam a poética entre design e significado. Artista visual e pesquisador, transita entre o pensamento e o fazer, inspirado pelas viagens, pelos sabores, pela natureza e pelas culturas que encontra pelo Brasil e pelo mundo. Cinéfilo nas horas vagas. Me siga no Instagram: @marcelo_minka
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