Foi Apenas um Acidente: uma reflexão

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Por Marcelo Minka

Vamos falar sobre este filmaço que estreou semana passada nos cinemas da cidade. “Foi Apenas um Acidente”, dirigido por Jafar Panahi (Táxi Teerã, 2015), parte de uma situação cotidiana para construir uma reflexão densa sobre memória, culpa e justiça. Panahi, que há décadas transforma restrições políticas em linguagem cinematográfica, usa aqui um incidente banal para abrir uma ferida moral que nunca cicatrizou, nem nos personagens nem no próprio país que os moldou.

A narrativa se inicia quando Eghbal, interpretado por Ebrahim Azizi (Estreando como ator), atropela acidentalmente um cachorro. O evento, aparentemente irrelevante, desencadeia uma cadeia de reconhecimento e suspeita. Vahid, vivido por Vahid Mobasseri (primeiro filme também), é um mecânico marcado por experiências de prisão e tortura, que acredita identificar em Eghbal um antigo algoz do regime. A partir desse reconhecimento instável, o filme abandona qualquer conforto narrativo e mergulha em um território de dúvida constante.

 “Foi Apenas um Acidente”, dirigido por Jafar Panahi (Táxi Teerã, 2015), parte de uma situação cotidiana para construir uma reflexão densa sobre memória, culpa e justiça.
Foto: divulgação

Panahi constrói o suspense não a partir da ação, mas da hesitação. Vahid não tem certeza absoluta. Ele investiga, confronta, busca confirmação entre outros ex-prisioneiros, todos carregando traumas semelhantes. O sequestro de Eghbal surge menos como um ato de vingança e mais como uma tentativa desesperada de validar a própria memória. O filme pergunta o tempo todo se lembrar é suficiente para condenar e se esquecer é uma forma silenciosa de absolvição.

A dimensão ética do filme se intensifica quando se considera o contexto em que foi realizado. Panahi o dirigiu sob severas restrições impostas pelo Estado iraniano, incluindo proibição formal de filmar e vigilância constante. Como em trabalhos anteriores, o filme foi concebido e rodado de maneira clandestina, com equipe reduzida, atores em seu primeiro filme, locações discretas e um rigor extremo para evitar interferência das autoridades.

Essa condição não é apenas um dado biográfico, mas parte estrutural da obra. A tensão permanente entre mostrar e esconder, entre falar e calar, reflete diretamente a situação do próprio diretor, transformando o ato de filmar em um gesto político e existencial de resistência.

Foi apenas um acidente

O que diferencia “Foi Apenas um Acidente” de outros thrillers morais é a recusa em oferecer soluções claras. Panahi não romantiza a violência nem glorifica a revanche. Cada diálogo é atravessado por silêncios incômodos e pequenas contradições que corroem qualquer certeza. O passado surge fragmentado, como costuma acontecer com vítimas de trauma, e o presente se torna um campo minado onde toda decisão parece errada.

Há também um humor seco e desconcertante, típico do cinema de Panahi, que lembra o tom agridoce de Táxi Teerã (2015). Esse humor não alivia a tensão, mas a aprofunda, expondo o absurdo de sistemas que normalizam a brutalidade e transformam o sofrimento em procedimento administrativo. O título, longe de ser irônico apenas, aponta para uma lógica perversa onde tudo pode ser descartado como acidente, desde um atropelamento até uma vida inteira destruída.

Formalmente, o filme é contido, quase austero. A câmera observa mais do que julga. A encenação evita excessos e confia na força ética das situações. Panahi entende que, em contextos de opressão, a dúvida é mais subversiva do que o discurso inflamado. Ao colocar seus personagens presos entre agir e hesitar, ele reflete uma sociedade inteira suspensa entre o medo e a necessidade de verdade.

“Foi Apenas um Acidente” não é um filme sobre vingança consumada, mas sobre o preço de carregá-la como possibilidade permanente. Ao final, o que permanece não é a catarse, mas o desconforto. Panahi sugere que algumas perguntas não existem para serem respondidas, apenas para impedir que a violência se repita sob novos nomes. É um cinema que não consola, mas exige maturidade moral do espectador, algo cada vez mais raro e, justamente por isso, necessário. Tenso, denso, engraçado, profundo.

Marcelo Minka

Mestre em Antropologia Visual (UEL), dá forma à linguagem estética da Angatu Joias, unindo arte, forma e símbolo em criações que revelam a poética entre design e significado. Artista visual e pesquisador, transita entre o pensamento e o fazer, inspirado pelas viagens, pelos sabores, pela natureza e pelas culturas que encontra pelo Brasil e pelo mundo. Cinéfilo nas horas vagas.

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