Por Alessandra Diehl
Sim, crianças e adolescentes transexuais existem! A prevalência de crianças e adolescentes com incongruência de gênero varia de 0,6 a 1,7% da população, dependendo da seleção do coorte do estudo, idade e método de investigação. Indivíduos transexuais reconhecem sua identidade de gênero ainda na infância e, muitas vezes, expressam esse desejo ao adotar elementos simbólicos desse gênero.
A incongruência de gênero é definida como uma condição em que a identidade de gênero de uma criança ou adolescente não se alinha com o sexo atribuído no nascimento. Isso pode causar sofrimento não necessariamente pela condição da transidentidade per se. Em outras palavras, as variáveis de incongruência de gênero não são preditores significativos de sofrimento.
Este fato inclusive apoiou as recentes mudanças propostas pela Organização Mundial de Saúde (OMS) na Classificação Internacional das Doenças (CID 11) na sua décima primeira versão, para mover as condições transgênero do capítulo Transtornos Mentais e Comportamentais para um novo capítulo sobre Transtornos Sexuais e Condições Relacionadas à Saúde Sexual.
Até o momento, a etiologia da incongruência de gênero na infância e adolescência ainda é em grande parte não identificada. O papel causal entre genes, hormônios, estrutura cerebral, comportamento, fatores psicossociais ainda é questionado e como esses diferentes fatores relacionam-se entre si é menos claro ainda e menos estudado.
Saúde mental em crianças e os jovens transexuais
Os problemas de saúde mental continuam a ser uma das principais preocupações coexistentes entre as crianças e os jovens transexuais, especialmente com relação ao consumo de substâncias psicoativas. Os problemas relacionados ao uso de substâncias em indivíduos transexuais parecem ser multifatoriais, com contribuições importantes da rejeição social, estigma, discriminação, baixo acesso a prestadores de cuidados de saúde com experiência em saúde trans e disponibilidade limitada a uma equipe multidisciplinar de especialistas.
O cenário em números
Adolescentes trans, por exemplo, têm maior probabilidade do que meninas e meninos cis de já terem usado álcool, cigarros e uma variedade de outras substâncias, como álcool, maconha e cigarro. Em média, estudantes trans usaram todas as três substâncias em idades mais precoces do que os estudantes que não declararam ser transexuais. Os achados principais de um relatório do Havaí publicado em 2018 sobre jovens transgêneros sinaliza que:
- 2 em 5 jovens trans usam maconha regularmente
- 50% dos jovens trans usam vaping de forma regular
- 49% dos jovens trans fazem uso de álcool de foram regular
- As chances de um jovem trans beber em grandes quantidades é 3 x maior que um jovem cis
- 1 em cada 4 jovens trans já fez uso de drogas injetáveis
- Quase 50% dos jovens abusam de medicações prescritas para dor
- 1 em cada 4 jovens trans já sofreu abuso sexual, já foi forcado a fazer sexo com alguém e saiu da escola por sentir medo de estar na mesma.
Dados de outros estados americanos mostram que :
- 28,2% desses jovens têm histórico de autolesão não suicida ao longo da vida,
- 28% histórico de ideação suicida ao longo da vida
- 14,8% histórico de tentativas de suicídio ao longo da vida
- 28% tiveram resultado positivo para características de anorexia nervosa ou bulimia nervosa, e três quartos tiveram resultado positivo para características de transtorno de ingestão alimentar esquiva/restritiva
- 55,2% têm depressão e ansiedade
O mundo contemporâneo segue sendo muito violento com crianças e adolescentes trans
Isso também tem alta associação com o fato de que o mundo contemporâneo segue sendo muito violento com crianças e adolescentes trans. No Brasil, os assassinatos de pessoas transexuais aumentaram mais de 10% em 2023 em relação ao ano anterior. Entre as mortes registradas, foram 145 homicídios e 10 suicídios. A pessoa trans mais jovem assassinada tinha apenas 13 anos. Cerca de 98% dos pais, mães ou responsáveis pelas crianças trans não consideram o ambiente escolar seguro, de acordo com pesquisa da ONG Grupo Dignidade em parceria com a UNESCO. Segundo um estudo da OAB do Brasil, agressões verbais, físicas e todo tipo de violência fazem com que 82% das pessoas trans sejam passíveis de evasão escolar.
A urgente necessidade de políticas públicas afirmativas de gênero para crianças e jovens trans
Para reduzir comportamentos de risco para a saúde, o apoio social nas escolas e o melhor acesso a ações de saúde preventiva são necessários. Soma-se que os programas adaptados às necessidades específicas destes jovens com pais e cuidadores que somam suas vozes e suas faces em defesa dos mesmos também desempenham um papel muito importante na promoção de prevenção ao consumo de substâncias e do adoecimento mental.
As intervenções recomendadas por sociedades de profissionais e relatórios de médicos especialistas muitas vezes visam aumentar os fatores associados ao aumento da resiliência e à redução do risco de desafios de saúde mental entre os jovens trans, como a consciência, a aceitação e o apoio dos pais com questões relacionadas a transidentidade. Soma-se a necessidade de intervenções para e nas escolas e a promoção de formatos inovadores de como os participantes utilizam os espaços online para promover a resiliência podem oferecer informações importantes para informar práticas afirmativas entre os jovens trans.
Alessandra Diehl
Psiquiatra, membro do Conselho Consultivo da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e Drogas (ABEAD) e membro da Associação Paranaense de Psiquiatria (APPsiq). @dra.alessandradiehl
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