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Querido diário: A casa

Por Clodomiro Bannwart


.Hoje quero fazer um registro sobre a casa.

Aristóteles é considerado um filósofo didático. Foi ele quem tratou de três importantes conceitos – ética, política e economia –, os quais ajudam a compreender a separação entre ordem pública e ordem privada. Uma separação que aqui no Brasil teimamos a escamotear.

A ética está implicada no vínculo que o indivíduo estabelece consigo mesmo, incluindo seus projetos e anseios de autorrealização no espaço social. A política aborda o vínculo dos cidadãos na polis (Cidade). É importante ressaltar que a política não trata da mera associação de indivíduos, mas do vínculo de cidadãos comprometidos com a qualidade da sociabilidade, o que, por sua vez, depende de pessoas éticas. Política e ética pertencem à ordem pública.

Já a economia, para Aristóteles, é o vínculo que relaciona os indivíduos como membros da casa (oikos). Daí o termo grego oikonomiké, que significa administração da casa. A economia aborda a ordem privada. O historiador austríaco Otto Brunner ressalta que a administração da casa (oikos) na Grécia antiga era exercida pelo senhor, aquele que detinha o domínio da casa, que dispunha de poder sobre a mulher, os filhos e os escravos. A casa era uma unidade que albergava a desigualdade de seus membros, sob a direção arbitrária e despótica de um senhor (Pater famílias).

Na Idade Média, Santo Tomás de Aquino transpôs o pensamento aristotélico aos cânones da teologia cristã. Habermas, na obra Teoria e Praxis, considera que Tomás de Aquino aniquilou a distinção grega entre política e economia. O poder do déspota exercido no âmbito do oikos (casa) acabou por ocupar o lugar do político (sociedade), o qual deveria ser exercido por cidadãos livres e iguais. A reflexão política de Aquino pariu uma ordem doméstica e familiar ajustada a uma concepção de Estado sob a regência do monarca, o déspota do oikos grego.

O Brasil recepcionou o modelo aristotélico-tomista, que em boa medida edificou nossa argamassa política e cultural. Trocando em miúdos: a política por aqui é interpretada à luz da vida doméstica, regulada de maneira patriarcal e de forma apolítica. Prevalece o poder arbitrário, despótico e autoritário. Isso permite entender algumas situações do quotidiano da política, como a que ocorreu na semana passada, quando um cidadão fez a seguinte pergunta ao Presidente da República: “Porque em todos os assuntos espinhosos/polêmicos do seu mandato, você põe sigilo de 100 anos? Existe algo para esconder?” O déspota da casa grande, em completo desrespeito à Lei de Acesso à Informação, respondeu: “Em 100 anos saberá”.

Não à toa que em nossas casas a política não entra. O antropólogo Roberto DaMatta diz que “as discussões políticas, que revelam e indicam posições individualizadas e quase sempre discordantes dos membros de uma família, estão banidas da mesa e das salas íntimas”. Em nossas casas entra o compadre, a reza, o culto e a novena, mas não entra o debate republicano. Não entra a democracia que é o regime da linguagem, do diálogo e do contraditório respeitoso. Em nossas casas imperam monarcas travestidos de pais, avôs, esposos, machos alfas, homens de bem, amparados sob o julgo de um despotismo silencioso. Antes de democratizar a política é preciso democratizar os afetos domésticos.

Lembro-me da minha infância no sítio. Os ditos “homens de bem” eram os que mais ajudavam nas obras de caridade da Igreja. Estavam sempre à frente das quermesses da paróquia. Tinham até capelas dentro de suas casas. E se orgulham disso. Era sagrado e obrigatório a reza do terço diário em família. Porém, parte desses homens tratavam seus filhos como submissos e batiam em suas esposas. Uma delas, amiga da minha mãe, comentou no velório do marido. “Dou graças por Deus por ter levado esse traste. Não aguentava mais vê-lo humilhar meus filhos e apanhar calada”.

Não é de estranhar que o chefe da casa, do alto do seu autoritarismo, extirpa a noção de trabalho do ambiente doméstico. “Minha mulher não trabalha”. “Meus filhos não trabalham. Apenas ajudam na lida do dia a dia”. “A empregada doméstica não trabalha. Ela está com a gente há anos. É como se fosse da família. É de casa!”. Roberto DaMatta recorda, uma vez mais, que todos os integrantes da casa estão submetidos ao déspota familiar numa relação de intimidade e de simpatia, porém, tratados como escravos. Sem direito à palavra, insumo indispensável de uma relação democrática, vivem amotinados e subjugados pelo autoritarismo. Hoje, é esse modelo de família que certos segmentos políticos defendem e propalam com a anuência de muitos religiosos.

Talvez, por tudo isso, compreenda-se o motivo de a Lei Maria da Penha e a Lei das Domésticas terem chegado tão tarde em nossas casas. Em 2015, quando a Lei das Domésticas (Lei complementar 150/2015) foi sancionada pela Presidente Dilma, eu ouvi de uma pessoa amiga: “Agora, além de colocar a pessoa em minha casa, ajudá-la em tudo, ela ainda terá direito a reivindicar direitos? Que absurdo!”

Se não democratizarmos o espaço privado de nossas casas, teremos, ao que parece, dificuldade de experenciar a democracia no espaço público.

Clodomiro José Bannwart Júnior

Professor de Ética e Filosofia Política na Universidade Estadual de Londrina. Coordenador do Curso de Especialização em Filosofia Política e Jurídica da UEL. Membro da Academia de Letras de Londrina.

Foto: PIxabay

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