Skip to content

Dia das mães: uma data em que preciso falar de minha mãe

Por Viviane Alexandrino

Para muitas mulheres negras, a sensação de nunca terem experimentado o amor em suas vidas é algo real, situação já alertada por Bell Hooks, em obra conhecida como Vivendo de amor.

O Dia das Mães, para mim, é um verdadeiro Calvário. Uso essa terminologia oriunda do Cristianismo justamente para representar – e infelizmente não metaforicamente – o que o Dia das mães representa em minha vida: condenação, angústia e dores que transpassam a razão e que eu preciso tentar expurgar para que minha ressurreição aconteça.

Nasci de uma mulher negra que nunca experimentou o afeto e o respeito.  Minha mãe nasceu condenada a ter seu destino traçado injustamente por outras pessoas. Foi abandonada ainda bebê para a adoção, junto de sua irmã. Ao ser adotada, a família adotante lhe ofereceu toda a sorte de maus-tratos, infortúnios e desalentos. Cresceu sendo humilhada, ofendida e percebeu que o casamento seria a solução para os seus problemas. Casou-se, bem jovem, com meu pai, um homem que também não lhe ofereceu amor e carinho.

Por rota do destino, teve três filhas mulheres, negras, e que nunca soube acarinhar-lhes. Um dia, decidiu que toda a sua trajetória estava pesada, sofrida, angustiante e foi embora, em uma tentativa de deixar para trás toda uma vida sem afabilidade. Foi nesse momento em que ela deixou, também, para trás suas três filhas. Assim, começou o meu martírio, um caminho de súplicas, dores, gritos e de tentativas salvação.

É a maior dor que carrego em meu peito: o fato de minha mãe ter ido embora. Sinto que todas as minhas forças se esvaem na semana do Dia das Mães. Sua lembrança está entranhada na minha memória: lembro de sua voz, seu cheiro, a cor de seus olhos, seus comentários sem sentido e todos os ensinamentos que ela tentou oferecer, ainda que não tivesse repertório nenhum de vida. Imagina o quão estranho para ela ter tido três filhas mulheres. Ela não sabia, e não deu tempo de saber, que toda sua trajetória foi fruto de uma construção social voltada para odiar e não amparar as mulheres negras.

A falta de amparo ocorre das mais variadas formas, é um pedido para ser forte, uma solicitação para ignorar os insultos, pois, afinal de contas, “você é forte”, um chamar de louca, ser preterida nas atividades escolares, ser motivo de vergonha e chacota pelos homens que não querem te assumir como uma companheira de vida. Além disso, ainda é preciso mencionar tantas vezes em que o mercado de trabalho também lhe fechas as portas ou dificulta sua entrada. A vida não é gentil para as mulheres negras.

Minha mãe nunca conheceu o afeto. Ela nunca conheceu o respeito que a sociedade deveria ter tido com ela. Ela também não soube amar – ou tentou amar – suas filhas e em um ato de desespero, talvez, resolveu ir embora em uma tentativa de deixar tudo o que lhe trazia memórias de suas memórias. Penso nisso, quando tento entender – sem aceitar – o que ela fez com a gente, com as memórias que me remontam quando lembro dela. Penso sempre: Como é possível amar quando não se sabe o que é o amor? Ainda não cheguei a uma resposta.

Quase não lembro mais de seu rosto, mas uma frase dita por ela ficou impregnada na minha cabeça e foi responsável por minha ressurreição como mulher preta, assim como Jesus que morreu para viver e dar vida em abundância a todos que a Ele invocar: “Estude para não ser como a mãe, uma pessoa que lava banheiros dos outros e ninguém dá valor”. Minha mãe sabia que a vida foi cruel com ela, só não sabia o porquê. É um morrer e nascer todos os dias. Confesso, que isso é extremamente extenuante, às vezes.

Diferente de minha mãe, pude provar em algumas oportunidades o amor, o afeto e o respeito. Mas ainda vivenciei experiência de falta de respeito e, também, falta de carinho. Talvez, um dia, tenha a chance de ressignificar a minha dor e reencontrá-la. Ainda, não é possível.

Mas sinto que meu dever vai muito além de perdoar minha mãe: é mostrar para outras mulheres negras, com trajetórias símiles à minha, que elas podem renascer socialmente, afetivamente, profissionalmente. Renascer, ressurgir, ressignificar e ressuscitar. Jesus provou que a dificuldade oferece dor, mas também novos caminhos. Eu provo para mim, todos os dias, que consigo, ainda que a dor me persiga e tente me paralisar. Para as mulheres negras, que seja possível ressignificar suas estradas e que o caminho do afeto lhes alcance. Para minha mãe, um até logo. Axé!

Viviane Alexandrino

Sou a Viviane, tenho 36 anos e atuo como professora de Língua Portuguesa em colégios da cidade de Londrina. Além da formação em Letras Português, pela UEL, e mestranda em Estudos Literários pela referida instituição, sou formada também em Jornalismo, profissão essa que exerci durante 10 anos antes de me apaixonar pela educação.

Compartilhar:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Designed using Magazine Hoot. Powered by WordPress.