Um hospício pra chamar de meu

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Nas pautas loucas da vida de jornalista, certa vez fui parar num hospício. A proposta da reportagem era “vivenciar” o local por 24 horas, e depois relatar o que vi. Claro que antes de ir ouvi todas as piadas, do tipo “cuidado para não ficar por lá”. Não fiquei e voltei com uma das melhores reportagens da minha vida. Daquelas para serem inscritas em prêmios. Não inscrevi.

Antes de ir, claro que houve toda uma articulação com o hospital. A Casa Cairbar Schutel, em Araraquara, no interior de São Paulo, tinha acabado de passar por uma enchente, e precisava de recursos para reparar os estragos. Uma boa ocasião para mostrar o trabalho de um dos mais antigos hospícios do estado.

O local, uma fundação espírita sem fins lucrativos que se mantém em pé há 53 anos, é mantido pelo SUS. É um complexo terapêutico composto por profissionais e voluntários. Lá, eles apostam em terapias alternativas, como dança, culinária e música. Então, aquela imagem de um lugar triste, cheio de gente gritando, até existe, mas não foi o que me marcou. Também vi muita alegria naquelas pessoas, que excluídas da sociedade, também estavam pouco se lascando com ela.

Vi de tudo. Solidariedade, abandono pelos familiares, alegria, tristeza, choro e sorrisos, entre outros sentimentos contraditórios. Um lugar em que nunca se sabe o que vai encontrar pela frente. Tive total liberdade para circular por todo o complexo hospitalar. E tive os diálogos – literalmente – mais loucos da minha vida.

Os internos considerados menos perigosos, andam livremente pelo local. Nem preciso dizer que arrumei vários “amigos”. Já os que precisam de assistência, ficam numa ala fechada. Foi aí que a tristeza baixou.

Eu não sabia, mas quando se fica muito tempo sem tomar banho, no lugar em que acumula sujeira, a pele perde pigmentação. Então aquele homem negro, que de longe parecia usar botas e luvas nada mais era do que um morador de rua que de algum modo, foi parar lá. Ninguém sabia o nome, e nem de onde tinha vindo. Nem ele mesmo. Chegou tão machucado por escaras, que quase teve partes do corpo amputadas. Mas com muito carinho, foi cuidado e recuperado.

Entre os tratamentos oferecidos pelo hospital, o que achei mais interessante foi a parte de Terapia Ocupacional, em sua maioria, ministrada por voluntários. E participei de uma de culinária, dada por uma travesti. Nela, além de ensinar a cozinhar, os internos reaprendiam a usar os talheres. Ela me explicou que, depois de muito tempo nas ruas, atos simples, como comer com talheres e tomar banho, por exemplo, têm que ser reaprendidos. A gente faz tão automaticamente, que nem se dá conta.

Depois de perambular pelo local durante todo o dia, chegou o horário mais temido por mim: como seria uma noite naquele lugar? Dormi no quarto dos médicos, com todo o conforto. Não sem antes me atentar aos barulhos que vinham de longe. Alguns gritos, reclamações e depois um silêncio profundo. Até fiquei acordada um tempo, batendo papo com o segurança, que passou boa parte do tempo falando do papagaio de estimação. Fora isso, nada de anormal.

A matéria, manchete da edição, contava “histórias de solidariedade e abandono” no maior hospício da região. Mexeu com a cidade, que se solidarizou para ajudar o lugar. E mexeu comigo, que voltei com um olhar diferente sobre a loucura. Ninguém está livre de ir parar em um lugar como aquele. Ainda mais nos tempos em que vivemos.

Raquel Santana

Já foi jornalista, acha que é fotógrafa, mas nesses tempos de Covid-19 ela só quer sombra e água fresca no aconchego do seu lar. Vendo seriados, óbvio!

Foto: Acervo pessoal

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