Todo mundo tem um “tio do pavê” na família. Aquele cara chato, que aparece sem ser convidado, reclama da comida, faz piada chata e depois vai embora, como se nada tivesse acontecido. No meu caso, o Tio Nelson, além de todas as “qualidades “ elencadas acima, era um bon vivant, que vivia às custas da irmã rica.
Era chamado de doutor sem nunca ter concluído o ensino fundamental. E dizem as más línguas que tinha até estetoscópio e receituário. Naquele tempo em que não tinha Google pra pesquisar, deve ter curado muita hemorroida e erisipela por aí.
Todo começo de ano, minha tia Amair, sua irmã, trocava o carro do doutor. Dos vários que passaram por sua direção, o preferido era o Fusca. Teve vários, de cores variadas.
Meu tio morava na Fazenda Água Branca, hoje distrito de Boa Esperança do Sul, no interior de São Paulo. A fazenda era de meus bisavós. Da casa, lembro de um filtro de pedra que hoje mata a sede da família de um primo. Me encantava ver a água passar pela pedra e sair fresquinha, do outro lado. Era a estrela da casa, todo mundo conhecia.
Nos fundos da construção , o tamarindeiro fazia sombra num banco. Comia a fruta do pé e só de lembrar, a boca enche de água. Meu tio morava sozinho na fazenda, até os irmãos fazerem a partilha. Daí ele foi morar com a irmã no Rio de Janeiro, cidade da qual ele não abria mão de passear e contava, orgulhoso, os cafés que tomava na tradicional Confeitara Colombo. Enfim, vida de rico carioca.
Acontece que alegria de pobre dura pouco e não poderia ser diferente com o tio do pavê. Como já disse, ele era muito arrogante. Foi morar com a irmã e brigou com o cunhado. Meu tio José era um lorde. Depois do entrevero, contam, cada vez que o tio José passava por ele, ele virava o rosto, colocava a mão no nariz e soltava um: fedido. Foi mandado de volta com o rabo entre as pernas.
Tio Nelson se achava bem cheiroso. Usava Ponds, um perfume de Alfazema que minha avó Filinha também usava, mas lá no fundo seu cheiro tinha um resquício de naftalina. Os ternos eram cuidadosamente guardados em plástico, envolto nos saquinhos das bolinhas brancas. Quando ele ia embora e se por acaso alguém chegasse em casa, tascava na hora um “tio Nelson esteve aqui “. O cheiro ficava no ar e levava horas para sair.
Como Pedra Branca ficava próxima à minha cidade , não dava outra, o tio vivia filando bóia lá em casa. Chegava tarde e eu era obrigada a esquentar e colocar a comida na mesa. Não sem antes ele reclamar do cardápio. Até o dia em que enchi as tampas e coloquei o bonito pra correr. Daquele dia em diante, virei a “bocuda” da família. E passei a vê-lo muito pouco até saber da sua morte.
Certamente foi para um céu de arco-íris, cheio de purpurina. Espero que não tenha reclamado nem do lugar e muito menos do anfitrião.
Raquel Santana

Já foi jornalista, acha que é fotógrafa, mas nesses tempos de Covid-19 ela só quer sombra e água fresca no aconchego do seu lar. Vendo seriados, óbvio!
Foto: A casa da bisavó/Acervo pessoal