Raquel Santana (*)
Não, não foi o Rock’n Rio o primeiro festival a reunir milhares de pessoas num lugar só em 1985. Uma década antes, na pequena Iacanga (SP), cidade na época com pouco mais de 6 mil habitantes, aconteceu o emblemático Festival de Águas Claras. Na época do festival, calcula-se que 70 mil pessoas passaram pela região. Com sua história recém resgatada no filme “O barato de Iacanga “ e em tempos em que o rock é de Satanás e responsável pelos abortos, lembrei de uma viagem muito louca ao festival em 1983.
Conhecido como o “Woodstock Brasileiro “, o festival teve quatro edições e momentos históricos O primeiro foi em 1975 e abalou as estruturas da tradicional família brasileira. Seu organizador, Antonio Checchin Jr, o Leivinha, no entanto, levou seis anos para conseguir, junto ao Dops (o departamento de censura) liberar a edição seguinte, em 1981. Depois o festival se repetiu em 83 e 84, não sem antes os seus organizadores serem fichados na polícia. Todos em plena ditadura militar.
Dei uma breve passagem pelo de 83 e confesso, foi histórico. Era julho daquele ano e fomos para Pirajui, distante 40 quilômetros de Iacanga, em férias. Em 79, já tinha ouvido falar do festival, um verdadeiro escândalo na época. O evento se resumia em uma multidão de jovens, todos acampados numa fazenda, por três dias, com apresentações musicais. Na época, além da censura , o que pegou foi o povo tomando banho pelado e consumindo drogas. Nenhuma novidade.
Meu irmão foi no de 81 e voltou entusiasmado. É claro que fiquei curiosa para ir. Era a primeira vez no Brasil que se reunia tantos artistas num só lugar. Para se ter uma ideia, nas primeiras edições apresentaram-se artistas como o grupo Mutantes, O Terço e Walter Franco, entre outros. Nas edições seguintes o line up não decepcionou, sempre com os artistas que bombavam na época.
Em 83, com os ingressos já esgotados – e mesmo se não estivessem a gente não tinha grana para comprar – embarquei eu e mais um amigo, num Fusca, rumo a Iacanga. Um amigo foi com outro amigo nos buscar. O amigo do amigo era amigo do Leivinha , o dono da fazenda Santa Virgínia . Portanto, a entrada não só era VIP, como 0800. E lá fomos nós, debaixo de muita chuva, para o meu primeiro festival de rock na vida.
Choveu tanto que para chegar ao local, só amassando barro. Mas como a gente era vip , tivemos a honra de permanecer na casa aonde ficavam os artistas. Para se chegar até o palco, só de trator. Naquela noite as grandes atrações eram Raul Seixas, João Gilberto e Gilberto Gil. Completamente travado, Raulzito não conseguia nem andar. A solução era seguir numa caçamba aclopada no trator. Lembro que fomos chacoalhando numa lama cheirando a merda de vaca. No trator também se encontrava Gilberto Gil.
Apesar da noite ter sido histórica, pois o Maluco Beleza estava tão travado que cantou em playback, o que mais me lembro é do enorme acampamento cheio de gente bonita. Todos felizes, debaixo de chuva, ouvindo Gil, Alceu Valença e João Gilberto, que naquele noite, milagrosamente, cantou, ao contrário de Raul, que foi de playback e muito vaiado. Deve ser por isso que hoje, em todo show de rock, o povo grita: “Toca Raul!”
Foto acervo pessoal de participantes, encontrada na internet
(*) É jornalista radicada em Curitiba mas apaixonada por Londrina