A arte como agente de mudanças

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Em 1993, eu e Mira Benvenuto começamos um projeto de artes no bairro União da Vitória. Na época, quando chovia, os ônibus nem entravam no bairro. Muitas famílias tinham vindo de fazendas ou sítios em busca de empregos na cidade ou melhores condições de vida e moravam embaixo de lonas.

Quando chegamos, éramos meras desconhecidas dispostas a implantar um projeto de artes para ajudar crianças e adolescentes. Mesmo sendo um projeto ligado à prefeitura, os recursos eram poucos e muitas famílias passavam necessidades e até mesmo fome. Para participar, as crianças precisavam estar matriculadas na escola e a prefeitura cedia cestas básicas para que elas não fossem para a rua pedir comida. Havia também outros oficineiros, também voluntários. Era extremamente difícil ganhar a confiança das crianças e os coordenadores mudavam constantemente.

No princípio, o projeto funcionava no prédio de uma das igrejas da região. Quando chovia as goteiras inundavam o local, os moradores enfrentavam preconceito e falta total de interesse por parte dos órgãos públicos.

Mesmo neste cenário, resolvemos seguir em frente. Tinha dias em que levávamos material, encarávamos a desconfiança de muitas pessoas que acreditavam que não voltaríamos para uma próxima aula. Certo dia, a igreja decidiu que não acolheria mais o projeto. A prefeitura conseguiu um galpão para que o projeto não parasse e, como o movimento social na região cresceu, ela foi obrigada a dar o mínimo pra isso. Como construir uma cozinha coletiva e evitar que chovesse no local, garantindo lanche, almoço e cestas básicas para as crianças. A prefeitura se viu na obrigação de dar uma estrutura mínima para aquelas pessoas.

Na época, uma das figuras mais importantes no bairro era a dona Gel, mulher guerreira que batalhava pelo bem-estar das pessoas ali. Para estar no projeto, era extremamente importante conquistar o respeito dessa mulher. Ela era incrível, mantinha a ordem no meio de 60 crianças apenas com o olhar! Dois anos depois do início do projeto, ela se tornou nossa amiga e aprendeu a nos respeitar também, mas antes tivemos que provar que estávamos lá para trabalhar duro pelas crianças.

Tudo isso pra dizer que o objetivo inicial do projeto era desenvolver o potencial criativo dessas crianças e ensinar como usar isso para sobrevivência. O resultado desse trabalho seria apresentado em uma exposição – o que aconteceu dois anos depois.  

Na primeira exposição mostramos as obras do Moizes (que se tornou meu braço direito no atelier que eu tinha com a Mira) e do José Luis, ambos muito talentosos e com famílias que os incentivavam muito. Me lembro que a Márcia Lopes, então secretaria da ação social, foi ver a exposição e achou os meninos incríveis. E foi a partir daí que pudemos contar com material e todo o necessário para manter o projeto de artes no bairro.

Esse projeto sobreviveu oito anos, com resultados fantásticos e pouco dinheiro. Pude conhecer um pouco mais sobre como funcionam os bastidores e o “querer político”, por assim dizer, perceber que são muitos os interesses envolvidos para que algo aconteça ou não. E ao mesmo tempo ficou nítido o quanto uma pequena ação pode mudar a vidas de mais de 100 crianças, tanto o de arte com os que vieram depois: artesanato, dança, música, todos pelas mãos de pessoas que moravam no bairro e tinham boa vontade e amor pelo que faziam. Um dos pontos altos do nosso projeto foi que as crianças foram convidadas para pintar um mural no PAI e fazer três esculturas para a inauguração do pronto socorro – o mural e as esculturas ainda existem, embora totalmente sem manutenção.

Não é difícil e nem caro, é possível mudar ou pelo menos tocar a vida de muitas pessoas através de projetos como esse. Foram tantas transformações as que vimos, tantas vitórias, trouxe tanta alegria! E cada vez que um projeto social de cunho cultural é encerrado, encerram-se também as esperanças de muitos jovens e o mundo do crime se abre pra eles, recebe de braços abertos.

Ao invés de abrir cadeias e pensar tão somente em punitivismo, deveríamos nos unir pra abrirmos espaços de ensino informal, projetos culturais, de esporte e lazer, para que se perceba essas outras formas de modificar a vida. Abrir portas e janelas para a vida renascer.

Fotos: Acervo pessoal

Angela Diana

Sou londrinense e me dedico à arte desde 1986 quando pisei pela primeira vez no atelier de Leticia Marquez. Fui co-fundadora da Oficina de Arte, em parceria com Mira Benvenuto e atuo nas áreas de pintura, escultura, desenho e orientação de artes para adolescentes e adultos.


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