Houve um tempo em que, lá no interior de São Paulo, toda a cidade se mobilizava para enfeitar a rua 7 de Setembro, a principal da cidade, para a procissão de Corpus Christi. Eram milhares e milhares de tampinhas de garrafas, pó de café, serragem e numa época em que papel alumínio não vinha em rolo, os fumantes da cidade guardavam os que vinham no cigarro. E dá-lhe encapar as tampas de garrafa e com elas, fazer as escamas dos peixes. O milagre da multiplicação, assim, estava garantido.
Não havia uma casa em que, a partir de certa data, se começasse a guardar o pó de café. Assim, detalhes como a barba de Jesus, também estavam garantidos. Era um tal de colocar o pó para secar no sol para poder guardar. Geralmente, havia uma carola da igreja responsável pelo recolhimento.
Naquela época, a cidade toda se unia em torno de um objetivo. No longo caminho que separava as duas igrejas lá em Boa Esperança, o calvário era interpretado a base de pó de serra, vidro moído, terra e o que mais a imaginação criasse. Levava-se uma noite toda decorando. Lembro do frio da madrugada e do cheiro do corante na serragem. E deve ter sido ali que me apaixonei pelos tons pastéis. Posso sentir a textura do material ganhando cor. As latas ficavam na calçada e a gente corria de um lado para o outro ajudando.
Os desenhos contavam o calvário de Cristo, como manda a tradição. Conta a história que os primeiros indícios de procissão datam do século XII. A data é uma comemoração litúrgica das igrejas Católica Ortodoxa, Apostólica Romana e Anglicana (esta última, até 1548) que ocorre na quinta-feira seguinte ao domingo da santíssima trindade, que, por sua vez, acontece no domingo seguinte ao de Pentecostes. É uma Festa de Guarda, em que a participação da Santa Missa é obrigatória, na forma estabelecida pela conferência episcopal do país respectivo.
Para os católicos apostólicos romanos, a procissão pelas vias públicas atende a uma recomendação do Código de Direito Canônico (cânone 944), que determina ao bispo diocesano que a providencie «para testemunhar publicamente a adoração e a veneração para com a Santíssima Eucaristia principalmente na solenidade do Corpo e Sangue de Cristo».
Em muitas cidades portuguesas e brasileiras, é costume ornamentar as ruas por onde passa a procissão com tapetes de colorido vivo e desenhos de inspiração religiosa, costume este, iniciado pela Irmandade do Santíssimo Sacramento.
Esta festividade de longa data se constitui uma tradição no Brasil, principalmente nas “cidades históricas”, que se revestem de práticas antigas e tradicionais e que são embelezadas com decorações de acordo com costumes locais.
Nos últimos dois anos, em muitos locais a tradição foi quebrada, devido à pandemia. Nas cidades mais históricas, a celebração aconteceu pela internet. Sinais dos tempos em que vivemos, em que até para contar o calvário de Cristo precisamos estar conectados.
Raquel Tannuri Santana
É jornalista, fotógrafa e cronista. Escreve esta coluna de segunda, com assuntos de primeira.
Fotos: Acervo Pessoal