Por André Luiz Lima
No meu processo artístico passei por vários mestres que fui encontrando pelo mundo e que me ajudaram no meio modo de ser e ver a vida.
Com a chegada da pandemia, as pessoas ficaram vulneráveis tendo que lidar com um mundo totalmente novo, novas formas de se relacionar, inclusive com elas mesmas.
Chegamos no momento da arte, da sensibilidade, da emoção, do saber ver e do saber ouvir, o olhar humano na superação de desafios.
Dentro desses vários olhares me veio a lembrança de um encontro que tive sobre A Arte de Escutar.
Escutar envolve muitas coisas, o distanciamento do ego e estar verdadeiramente para o outro sem julgamento apenas ouvindo.
Morei em Lugano, na Suíça, quando fui estudar e fiz vários amigos que se tornaram minha família.
Um deles foi Roberto, éramos praticamente irmãos.
Roberto era filho único até sua mãe adotar dois chineses, uma menina e um menino.
Fausta, mãe de Roberto, foi uma das primeiras que começaram a adoção e nesse momento morava na comuna de Riva San Vitale, no Cantão Tessino, perto de Lugano, quase divisa com a Itália.
Os anos se passaram e eu não havia conhecido Fausta, me lembro que das várias vezes que eu peguei o trem desde de Lugano com destino a Milão e passava em frente a Riva San Vitale. Podia se ver a igreja, as casas com a fumaça saindo da lareira, às vezes sol, às vezes neve, cenas de um filme para mim.
Eu olhava pela janela com certa curiosidade, com vontade de parar de ir ao encontro como se tivesse algo, ali para mim.
Seria um sinal, um chamado vindo de lá encontrando um eco dentro das minhas também necessidades?
Pois é! Chegou o dia!
Estava no Brasil e recebi um convite do Roberto para passar o Natal em Lugano.
Confesso que não sabia como seria esse Natal, pois a parte emocional dos Suíços é bem diferente da nossa.
Mas, nesse ano, o núcleo do Roberto iria se reunir e fui convidado a ir finalmente à casa de Fausta almoçar no dia 24.
Cheguei em Riva San Vitale, que chama atenção pelas paisagens impressionantes e boas histórias, só que agora eu via o trem passar do outro lado. Eu já estava ali.

Fui recebido em uma casa de pedra onde Fausta morava antes de se casar, embora a casa tivesse três andares, era pequena; cada andar era um cômodo. No primeiro era a cozinha com fogão de lenha e lareira para aquecer os dias frios do inverno. Nosso encontro foi ao redor da távola tomando um copo de vinho e as histórias começaram a dar sentido.
Fausta começou a me contar toda sua história de vida com direito a álbuns de fotos e os detalhes de cada acontecimento.
Eu realmente me sentia privilegiado como me sinto agora em relembrar, podendo dividir essa história na Arte dos Encontros.
Fotos do casamento, momentos, separação, sentimentos conquistas, vitórias, arrependimento unindo com a fé que a levou várias vezes ao Santuário de Lourdes na França e a fazer parte da Cruz Vermelha para poder ajudar pessoas.

E assim as histórias continuaram como se estivessem passando em uma tela de cinema e, para dar inveja, o almoço era polenta com molho, pães, queijos, vinho, lareira, neve lá fora e o trem que passava lá no alto.
Todos esses detalhes fazem parte, desse todo, desse cotidiano com suas paisagens, clima, sabores que se misturam a sentimentos solitários na brevidade da vida.
Mas com quem trocamos esses momentos?
Quem pode nos ouvir?
Quem está de coração aberto apenas para escutar?
Enfim, terminamos nosso almoço depois desse momento tão íntimo. Já tinha dia e hora marcado para minha volta ainda antes que o ano terminasse.
Nesse período, Fausta não passou muito bem, estava com problemas no coração. Um fato muito importante pois ela se recusava ir para uma casa de repouso, situação normal na Suíça, quando já se está com uma certa idade. Fausta estava com 80 anos, morava sozinha e foi se garantindo na sua independência até onde conseguisse.
Finalmente a minha volta chegou e ela estava à minha espera com café, chocolate, muita neve lá fora que não impedia os patos a circularem pelo lago, as pessoas em seus negócios e o trem ainda passando levando pessoas rumo a Milão que eu ainda acompanhava em silêncio.
Voltamos às histórias e aos álbuns de fotografia, seu olhar cuidadoso de carinho me emocionava e podíamos até rir de situações. Éramos cúmplices desde quando ouvíamos o chamado para esse momento tão delicado de afetos compartilhados.
Temos que estar atentos aos sinais!
Terminei o café, comi o chocolate e ela me entrega um envelope com um cartão de felicitações de ano novo.
Abro e leio.
“Querido André,
Quero lhe agradecer por ter estado comigo esses dias.
Agradeço por você ter me ouvido.
Verdadeiramente sentia que você me ouvia.
Mais feliz ainda porque meu filho estava presente e ele sempre diz que eu repito sempre as mesmas coisas.
Tenha um ano brilhante.
Da sua Fausta.”
Recebi esse cartão que guardo até hoje como um presente, fui para Lugano e recebo uma ligação, no outro dia, que Fausta foi para o Hospital e partiu dessa vida.
Ela tinha deixado seu enterro já organizado e foi umas das cerimônias mais bonitas que vi na minha vida, desde o cortejo até o cemitério e as últimas despedidas.
Para minha sorte,, um dia desci do trem, ouvi o chamado e fui resolver o que tinha naquele lugar, naquela casa, naquele cotidiano que sempre me chamava.
E acabou sendo um final feliz com tudo resolvido, cada coisa em seu lugar.
Eu ouv, e deixei ela me presentear com algo tão profundo.
Viramos cúmplices e eu ainda sigo por aqui a caminhar.
Viva a Vida, André!

André Luiz Lima
Londrinense, ator, diretor, professor, palestrante e produtor cultural
Foto principal: Acervo pessoal
Respostas de 2
Grata! Mais uma vez um encontro que toca alma e coração!
Lindo! Verdadeiro e de muita escuta.